O Oriente Médio, a imprensa e o deserto

Diogo Bercito
Repórter em Gaza, durante manifestação diante de escritório do Hamas. Crédito Diogo Bercito/Folhapress

Costumo ouvir, e não me surpreende, que sou “corajoso” por trabalhar no Oriente Médio. Moro em um país cujos vizinhos enfrentam de guerra civil a golpe de Estado, e mesmo por aqui os dias não andam fáceis. Após diversos meses na região, e principalmente depois de passar pelo Iêmen, já não me surpreendo ao ver uma metralhadora ou uma adaga a tiracolo. O fotógrafo Joel Silva, que me acompanhou na cobertura dos massacres do Cairo, recebeu um tiro de raspão na cabeça. Eu fui cercado por manifestantes e chamado de espião. Faz parte do ofício.

Mas costumamos deixar passar, na leitura do jornal ou no feed do Twitter, as notícias sobre os “outros” jornalistas no Oriente Médio. Não os orientalistas, mas os propriamente orientais. Como Ahmed Abu Deraa, preso no Sinai na quinta-feira (5) pela acusação de divulgar falsas notícias sobre o Exército do Egito. Repórteres do “Al Masry al-Yawm”, onde ele trabalha, fazem vigília hoje (9) pela sua libertação.

Um caso isolado? Dificilmente. O Egito, que já tinha vivido dias de censura durante o governo islamita de Mohammed Mursi, tem visto seus jornalistas presos e acuados pela Presidência interina de Adly Mansur. A rede de televisão Al Jazeera foi desmontada no país. Um fotógrafo que tive o prazer de conhecer, no Cairo, foi morto enquanto filmava soldados em uma manifestação.

Tampouco o perigo é uma prerrogativa egípcia. Hoje esbarrei, por acaso, em um anúncio de emprego no “Yemen Times”, o interessante jornal editado por Nadia al-Sakkaf, que entrevistei neste ano em Sanaa. Entre os requisitos publicados no website do periódico (leia aqui), está a “compreensão dos riscos associados ao trabalho da mídia no Iêmen”.

Na faixa de Gaza, há alguns meses, acompanhei um protesto pela unificação dos governos das facções Fatah e Hamas. Um repórter da agência palestina Wafa me disse que é constantemente espancado ou detido por escrever sobre o regime dos militantes do Hamas nesse estreito de terra. Um amigo, também em Gaza, publicou recentemente um apelo em sua página do Facebook –“Só porque não sou famoso ninguém se importa que eu seja detido pelo governo?”.

Ainda –recebi, hoje pela manhã, o e-mail de um repórter iraquiano que foge rumo ao Brasil para recomeçar a vida. Ele está exausto da difícil vida em Bagdá, e neste caso não somente em relação à censura e à insegurança. O rapaz vai precisar de amigos, em São Paulo.

São os exemplos que me veem à mente, enquanto escrevo este relato. O que de certa maneira me assusta, porque me faz ter a impressão de que há incontáveis outros casos de séria violação do direito à liberdade de imprensa, condição fundamental para a manutenção de sociedades democráticas. Convido os leitores que contribuam, aqui, com as histórias que conhecerem, da Tunísia ao Iraque, de repórteres impedidos de exercer seu trabalho. Entidades de defesa dos direitos humanos organizam, também, listas de violações (veja um relatório aqui)

É surpreendente que a situação esteja tão ruim. A imprensa não é uma novidade no Oriente Médio. A atividade começou, nessa região, em 1828, sob as ordens do modernizador Muhammad Ali, com o estabelecimento da gazeta “Assuntos Egípcios”, inicialmente escrita simultaneamente em turco-otomano e em árabe. No Brasil, a prática data de 1808.

Costumamos costurar uma aura de glória em torno dos correspondentes no Oriente Médio. Grandes nomes escrevendo ao “Independent”, ao “New York Times”, ao “Guardian”. Heróis dos estudantes de jornalismo, por viajarem a países em conflito vestindo colete a prova de balas –e, depois, voltarem para países de primeiro mundo com seguridade social e garantia de livre expressão.

Não que eles não sejam heróis. Acabo de ler que o italiano Domenico Quirico, do “La Stampa”, foi solto hoje na Síria depois de cinco meses de sequestro. Mas penso também nos jornalistas que escrevem a pequenos veículos locais, como meu amigo iemenita Mohammed Bamatraf, editor do “Aden Tribune” (visite o site aqui), que tem de lidar não apenas com a sobrevida entre atentados terroristas e um governo repressivo –mas que, em meio a isso tudo, convive com uma economia sem perspectivas, um emprego não remunerado e a ausência do apoio trazido pelo contrato assinado com um grande veículo de imprensa.

Comentários

  1. Olá, Diogo.

    Imagino que o cotidiano em países em conflito não seja fácil para ninguém e deve ser ainda mais penoso para aqueles que desempenham funções que, de uma forma ou de outra, desagradam aos grupos conflitantes.

    Seu relato me lembrou do filme “O ano que vivemos em perigo”. Não sei até que ponto aquele filme é fidedigno à realidade dos jornalistas, mas lá mostra que muitos jornalistas veteranos dirigem-se a países em crise para saciar algum tipo mórbido de prazer, e resta aos jovens jornalistas o trabalho pesado de ir atrás dos fatos.

    Abraço.
    A.

  2. Não sei se esta matéria é um lamento, uma constatação, um protesto ou uma reflexão por parte do Diogo. Ou nenhuma das anteriores ou todas as anteriores. Mas em minha humilde opinião, a liberdade de imprensa e o direito de informar são, em boa parte do Oriente Médio, um luxo, uma comodidade em matéria de direitos humanos ainda não conquistada.

    Sim, porque outras liberdades individuais mais “básicas” por assim dizer, sequer foram conquistadas ou consolidadas no OM. Para começar, o direito à vida, que sequer é plenamente reconhecido por diversas vertentes mais radicais do Islã, que subordinam esse direito NO PLANO TERRENO à aquiescência de Alá, que não se ocupa apenas dos “direitos” no dominio espiritual, mas também interfere ativamente nos direitos do plano terreno.

    Além da religião, os governos de inumeros paises do OM tem grande dificuldade em reconhecer o direito inalienável a vida, submetendo esse direito aos seus interesses imediatos.

    O direito à educação está longe de estar garantido em quase todo o OM, educação feminina que é vista com enorme desconfiança por governos e religiosos em geral. Como desenvolver uma imprensa dinâmica, respeitada e forte se nem sequer o direito à educação é considerado “garantido” ?

    Não vou prolongar muito neste tema: Mas as muitas vezes temerárias condições em que os reporteres exercem sua profissão no OM não pode ser analisada fora do contexto das tenues garantias aos direitos individuais existes no OM: A situação da imprensa no OM é consequência disso, e não é possível imaginar uma imprensa nos moldes de parte da imprensa brasileira, americana ou europeia, pois para assim fazer, seria necessário que as imprensa conseguisse sublimar as etapas de evolução dos direitos civis no OM, que ainda são tenues, como disse.

  3. Muito triste essa constatação, Diogo, infelizmente a história do OM é milenar e na época de ouro dos califados se vivia outra atmosfera.

    É um processo secular onde a segunda palavra que mais aparece no Quaran está sendo renegada, felizmente ainda existem pessoas que lembram que ela é: Conhecimento.

    Já dizia Al-Ansari:

    “O conhecimento antes costumava ficar em nossos peitos. Hoje, ele fica na estante.”

    (al-Majmu’, 1/265)

    Abraços.

  4. Mais um excelente texto com Portugues correto.
    Seus textos sempre orignais, os temas se repetem, mas voce consegue fazer com que parecam originais sempre.

  5. Admiro voce e estes jornalistas que se arriscam.
    Voce poderia muito bem ficar escrevendo besteira no seu twitter, ficar fazendo propaganda de suas ideias no “bem bom” do seu apaartamento.

    Mas voce escolhe a procura pela verdade. Parabens.

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