E se jornalistas cobrissem os EUA como fazem com o Oriente Médio?
Considere o parágrafo a seguir: “Representando milícias, milhares de homens armados desceram a uma capital regional para cercar as autoridades e pressioná-las para legislar a seu favor. Os grupos brandiam diversas bandeiras, algumas delas estampadas por complexos símbolos do século 18, e exigiam que o governo respeitasse uma lei de 1791. Esse conflito foi iniciado por seus antepassados”.
Se você tivesse de adivinhar em que região do mundo a notícia acima aconteceu, o que diria? Tomo a liberdade de supor que grande parte dos leitores apontaria para o Oriente Médio. Milícias, conflitos centenários e violência são de fato algumas das características recorrentes na maneira com que os jornalistas costumam representar aquela região, onde estão países como Egito, Síria e Iêmen.
O protesto armado, no entanto, aconteceu nos Estados Unidos. Acompanhei o evento in loco. As diferentes maneiras com que vi a imprensa abordar a questão me fizeram pensar em como a cobertura do Oriente Médio é marcada por diversos estereótipos que, afinal, poderiam ser utilizados também em outros lugares.
Recentemente, escrevi sobre esses estereótipos. Quando abordamos o Oriente Médio, ficamos à vontade para explicar fenômenos políticos por meio de lentes culturais. Tradição e religião parecem ser o segredo de tudo. Mas, para falar sobre os Estados Unidos ou a Europa, de repente tratamos os atores políticos como seres racionais.
O comediante libanês Karl Sharro tratou desse fenômeno em 2018. Ele decidiu narrar os protestos na França utilizando a mesma linguagem dos jornalistas que escrevem sobre o Líbano. No tuíte abaixo, por exemplo, ele diz: “Um movimento orgânico de protestos sem líderes ou uma ideologia clara surgiu na França. Estive esperando por isso desde 2011. Deixem que eu explique a Primavera Francesa para vocês”.
An organic, leaderless protest movement with no clear ideology has emerged in France. I’ve been waiting for this since 2011. Let me explain the French Spring to you.
— Karl Sharro (@KarlreMarks) December 1, 2018
Karl Sharro “explicou” em seus tuítes, por exemplo, que os coletes amarelos vestidos pelos manifestantes naquela data representavam as regiões mediterrâneas da França oprimidas por Paris — eles ecoavam, portanto, insatisfações ancestrais. O fato de vestirem coletes, ademais, está relacionado à cultura francesa, em que tais prendas simbolizam o desamparo. “Ao virarem carros de ponta cabeça, os coletes amarelos estão simbolicamente capotando toda a premissa cartesiana da França”, segundo a sátira do comediante. “Não é apenas contra o autoritário Macron, mas uma revolta contra a ordem centenária.”