Americano-libanês cria um dicionário online de árabe incluindo dialetos
Os leitores deste Orientalíssimo blog que estudam ou já tentaram estudar árabe sabem que essa tarefa é um pouco mais difícil do que montar um camelo: são anos de esforço para absorver não apenas um novo sistema de escrita, mas também um outro modo de pensar.
Já escrevi uma longa reportagem sobre isso na Folha. Um dos principais obstáculos aos estudantes é a chamada “diglossia”, o fato de que coexistem variantes formais e dialetais, como aconteceu na Europa durante a formação das línguas latinas — como se vocês hoje soubessem falar latim e português. Para complicar o cenário, existe mais de um dialeto árabe. Por exemplo, no Marrocos, no Egito e no Iraque se falam línguas bastante diferentes — imaginem então ter que falar latim, português, espanhol e romeno ao mesmo tempo.
Foi um processo difícil para o americano de origem libanesa Hossam Abouzahr, que aprendeu a língua quando já era adulto. Depois de longos anos de formação, ele decidiu ajudar os colegas. Lançou o aplicativo Lughatuna (“nossa língua”, em árabe). O dicionário é constantemente atualizado e inclui palavras e definições no árabe padrão e também nos dialetos do Egito e da região do Levante. É um projeto incomum, e chamou a atenção dos entusiastas da língua.
O objetivo de Abouzahr é provar que o árabe padrão — conhecido como “fusha”, ou “o eloquente” — e os dialetos coexistem e precisam ser enxergados como partes de um mesmo sistema. Essa é uma perspectiva diversa daquela assumida por universidades e cursos de árabe, que por vezes escolhem ensinar um ou outro tipo de fala. “É um fato que as línguas vivem lado a lado. Nós apenas precisamos criar as ferramentas para demonstrar isso”, ele afirmou ao site Al-Fanar.
Na descrição do Lughatuna, Abouzahr escreveu:
Frequentemente o árabe clássico é o único aspecto ensinado e os dialetos são ignorados. Há razões para isso, algumas delas práticas. Alguns veem os dialetos como não sendo línguas e não merecendo ser ensinados. Não quero entrar em uma discussão sobre se o árabe clássico é uma língua morta ou não. Quero mostrar como o árabe é vivo, tanto como dialetos quanto como língua formal. Amo a língua árabe. Amo a literatura, amo falar. Amo poesia e música. Amo como soa.
O Lughatuna tem hoje de 30 mil a 40 mil termos e 70 mil definições em árabe formal. Há também 20 mil termos e 30 mil definições nos dialetos do Egito e do Levante. É possível fazer as buscas em árabe, inglês ou pela raiz da palavra (uma opção útil a quem está estudando a língua e precisa entender a relação entre os diferentes termos).
Para quem não conhece o árabe e está curioso para entender melhor como ele soa aos ouvidos, este Orientalíssimo blog sugere o poema “إرادة الحياة” (“vontade de viver”) do tunisiano Abu al-Qassim al-Shabi (1909 – 1934). Há algumas traduções em inglês dos primeiros versos. Em português, o início seria algo como “se um povo um dia tem vontade de viver, então sem dúvida o destino responderá aos seus pedidos” — esse foi um dos lemas dos protestos que se espalharam pelo mundo árabe em 2011. O vídeo com o som do poema está abaixo: