Doutrina medieval pode ser antídoto contra o Estado Islâmico
Na guerra contra a organização terrorista Estado Islâmico, responsável neste ano por dois atentados a Paris, uma eficiente arma se esconde em textos medievais já esquecidos pelo islã. Em especial, na ideia da postergação. Essa sugestão foi publicada na segunda-feira (21) pelo jornal americano “New York Times”, em um texto assinado por Mustafa Akyol, autor de “Islã Sem Extremos: Um Caso Muçulmano pela Liberdade”.
Akyol se refere especificamente ao conceito de “irjaa”, parte de uma teologia do início da Idade Média que pode ser traduzida como “adiar”. Esse princípio era corrente durante os séculos 7 e 8, nas primeiras décadas do islã, quando a identidade de seitas como a sunita e a xiita ainda não estava totalmente formada. Àquela época, enquanto grupos rivais disputavam uma traumática guerra civil, ainda hoje lembrada, uma terceira força surgiu entre os muçulmanos: o kharijismo.
Os kharijitas se opunham tanto aos sunitas quanto aos xiitas, excomungando ambos a partir da ideia de que não eram bons muçulmanos e, portanto, deveriam ser mortos. Esse movimento radical foi combatido justamente pela ideia de “irjaa” –a postergação do questionamento a respeito de quem é um muçulmano correto e quem não é. Essa questão, afirmavam os defensores da “irjaa”, deveria ser respondida após a morte, já que apenas Deus pode julgar a fé de um fiel.
A “irjaa” não tornou-se um conceito corrente no islã, e foi derrotada pela ideia de que a fé tem de ser obrigatoriamente declarada. Diversos grupos insistem, por exemplo, na necessidade da crença ser exteriorizada e provada pela ação. Uma busca rápida por páginas informativas sobre o islã mostra que o conceito é até hoje combatido (por exemplo, Abu Qatada al-Filastini condena a “irjaa”).
Mas é justamente essa ideia que Akyol quer trazer de volta ao discurso público. Ele explica:
A teologia que [os seguidores da “irjaa” pregam] poderia ter sido a base para um islã tolerante, não coercivo e pluralista –um liberalismo islâmico. […] Eu convido meus correligionários que pensam assim a unir-se a mim e vestir o brasão da “irjaa” com orgulho –e com conhecimento renovado. Nós perdemos essa teologia-chave há mais de um milênio, mas hoje precisamos dela desesperadamente para encerrar nossas guerras civis religiosas e estabelecer liberdade a todos.
Akyol afirma que já há milhões de muçulmanos que praticam a “irjaa” sem conhecer ou adotar o termo. São os seguidores do versículo do Corão (livro sagrado do islã) que diz: “Não há obrigatoriedade na religião”. São, insiste, aqueles que deixam o julgamento sobre a religião a Deus, seguros de que ninguém pode determinar a fé dos outros.
Não à toa o Estado Islâmico condena a “irjaa” em sua revista oficial, “Dabiq”. Na edição de março, a organização terrorista publicou um artigo referindo-se a esse conceito como “a mais perigosa heresia”. Para Akyol:
Cientes de que a “irjaa” é seu antídoto teológico, o Estado Islâmico representa ela como uma falta de piedade religiosa. Mas ela é, na verdade, a verdadeira piedade combinada com a humildade –a humildade que vem quando honramos Deus como o único juiz dos homens. Por outro lado, o zelo do Estado Islâmico no mando, que apresenta como piedade, parece vir da arrogância –a arrogância de julgar todos os outros homens, dizendo ter o poder sobre eles, em nome de Deus.