Terroristas esfarelam ruínas no Iraque

Diogo Bercito

A herança arqueológica do Iraque –sobrevivente de milênios violentos na região– está se esfarelando diante da ameaça do Estado Islâmico. A destruição é motivada por uma interpretação radical e minoritária do islã que considera vestígios arqueológicos como “ídolos” de civilizações passadas.

O que está em risco são ruínas e artefatos que nos contam as sangrentas histórias de impérios como o assírio e o parto, cenários de relatos clássicos como os de Heródoto e narrativas bíblicas. A destruição ali, alertam arqueólogos, é irreversível. A Folha publicou nesta quinta-feira (12) a relação de alguns desses locais e a minha entrevista com Marcelo Rede, professor de história antiga da USP.

Aproveito para transbordar o assunto para este Orientalíssimo blog e publico, abaixo, uma versão mais longa da conversa que tive com Rede, que ademais coordena um laboratório de história da Antiguidade e faz parte de um time francês de pesquisadores.

Orientalíssimo – O Estado Islâmico destruiu Nimrud, o acervo do museu de Mossul, o portão de Nirgal, Hatra, a mesquita de Jonas e Khorsabad. O sr. incluiria algum outro local nessa lista?
Marcelo Rede – Esses foram os alvos mais visíveis e aqueles em que, infelizmente, os guerrilheiros fundamentalistas realizaram seus ataques mais espetaculares no sentido que procuraram explorar a destruição do patrimônio histórico e arqueológico para efeito de propaganda de guerra. São locais que estão no imaginário de muitos, muitas vezes porque são citados na Bíblia ou em autores clássicos, como Heródoto. Outras vezes, porque fazem parte da história das maiores descobertas arqueológicas desde o século 19.

Há mais dano, além desses monumentos conhecidos?
É preciso também levar em conta um universo menos visível, que não aparece nos vídeos do EI nem na cobertura jornalística: são milhares de sítios, monumentos e artefatos de vários milênios de história. Só no Iraque, são repertoriados mais de 10 mil sítios arqueológicos. Desde o fim da pré-história, essa região conheceu uma sucessão de civilizações, de grande reinos e impérios: os sumérios, os babilônios, os assírios, o domínio persa, os partas, os sassânidas, para não falar de todo o período islâmico com seus reinos e califados.

A maior parte desses locais são sítios arqueológicos do império assírio.
De fato, são as principais capitais assírias no 1º milênio a.C. Nessa região, diferentemente de outras mais ao sul, por exemplo em Babilônia, a pedra foi bastante usada nas grandes construções, sobretudo nos palácios das capitais. Em geral, a arquitetura mesopotâmica é baseada na argila. Mas, na Assíria, as paredes internas dos palácios eram forradas de relevos gravados em grandes painéis de pedra. Em geral, continham cenas das guerras e conquistas dos soberanos, mas também rituais e cenas religiosas. Também havia muito mais estátuas em pedra no norte assírio, inclusive os grandes gênios protetores nas portas dos palácios ou da cidade. A má coincidência é que essa região, que foi o coração da Assíria, está agora sob domínio do Estado Islâmico.

O sr. estuda a região há décadas. No passado, a destruição dessas ruínas era também uma preocupação?
Evidentemente, a destruição dos resquícios do passado faz parte da história da humanidade e de suas guerras. Mas eu diria que o que é mais corrosivo para o patrimônio histórico e arqueológico é uma destruição lenta, surda, derivada do próprio desarranjo do país. As autoridades já não conseguem mais controlar e proteger os locais, têm outras prioridades. Os saqueadores se aproveitam da situação e, por vezes, a própria população local vê nas escavações clandestinas um meio de sobrevivência em uma situação de extrema penúria. Em sentido inverso, felizmente, nós vimos várias vezes funcionários desemparados de museus e sítios fazerem de tudo para proteger o patrimônio, com ajuda das populações locais.

A missão do CNRS rumo ao Sinjar, cancelada em 2014, tinha qual objetivo? Você faria parte do grupo?
Com as dificuldades no Iraque, grande parte das expedições arqueológicas migraram para a Síria nos anos 2000. Quando a guerra civil Síria eclodiu e o quadro iraquiano melhorou um pouco, houve um retorno para o norte do Iraque, principalmente a região controlada na prática pelas autoridades autônomas curdas. Com a escalada do EI tudo mudou, as missões ficaram cada vez mais perigosas, tanto na Síria como no norte do Iraque. As últimas missões se concentraram na região do Sinjar, em pequenos sítios ainda pouco explorados. Mas, em 2014, o Ministério de Relações Exteriores e as autoridades militares francesas não permitiram a partida da equipe. Pessoalmente, eu não faria parte, pois não sou um arqueólogo de terreno.

Qual é o impacto, no longo prazo, da ausência de arqueólogos na região?
O impacto presente é o que vemos, perda e destruição de patrimônio, desestruturação dos museus, atualmente principalmente o de Mossul, não formação de quadros, de novas gerações de arqueólogos locais, de técnicos, de pessoal especializado em preservação. Mesmo se há um grande esforço de algumas organizações em tentar fazer o possível, sobretudo em termos de salvaguardar os bens culturais. O futuro é muito incerto. Se o confronto cessar hoje, mesmo assim serão necessárias décadas para recompor minimamente o sistema de museus, os circuitos de escavações etc.

O tipo de dano de que temos relato, por exemplo em Hatra, é de alguma maneira reversível?
A situação de Hatra ainda é muito obscura. É um sítio enorme, uma cidade inteira, com muitas construções em pedra, muita estatuária ainda no local. Os danos podem ser consideráveis. Mas o que foi registrado por vídeo do próprio EI no ataque ao museu de Mossul e ao sítio de Níneve mostra bem que os estragos podem ser completamente irreversíveis. Estátuas foram esmigalhadas a marretadas, os grandes Lamassu, gênios protetores, do portão do deus Nergal, que ficava na muralha norte de Nínive, foram destruídos ou desfigurados com uma britadeira. Para esse tipo de dilapidação, dificilmente haverá possibilidade de restauração.

Essas ruínas sobreviveram por milênios. Como? Estavam escondidas embaixo da terra?
Em grande parte, foi isso que ocorreu. Cidades inteiras foram destruídas ou abandonadas e o tempo se encarregou de cobri-las com terra. Por volta de 1850, começou a grande aventura da busca das antigas cidades enterradas da Mesopotâmia. Até então, Nínive ou a Babilônia só eram conhecidas por serem mencionadas na Bíblia ou nos autores gregos ou romanos. É no século 19 que as escavações vão realmente encontrar e identificar as antigas cidades. O processo começou pela redescoberta das capitais assírias, pois os interesses dos europeus estavam concentrados na região de Mossul. É por isso que museus como o Britânico, o Louvre ou de Berlin abrigam alguns dos principais monumentos assírios e grande parte da documentação escrita em tabletes cuneiformes.

Que tipo de herança essas ruínas nos deixam?
Pense, por exemplo, em elementos essenciais que compõem a trajetória histórica da humanidade: a domesticação dos animais; o aparecimento da agricultura; a escrita e os primeiros textos da humanidade; o surgimento de instituições centralizadas de poder, na forma de palácios; a constituição dos templos como locais de culto mas também de organização social; a formação dos primeiros panteões organizados de deuses; as primeiras experiências de expansão através da guerra; a organização massificada da produção de bens, desde a cerâmica até o pão e a cerveja… Toda essa história não poderia ser contada devidamente sem o estudo histórico do Oriente-Próximo e, em particular, da Mesopotâmia. Destruir isso é condenar uma parte do passado humano ao esquecimento.