Mas o califado não acabou em 1924?
Os militantes do Estado Islâmico, que instituíram um califado no território entre Síria e Iraque, ainda não conseguiram estabelecer um “Estado” e, em termos religiosos, também não são reconhecidos pelo mainstream como instituição “islâmica”. As nomenclaturas serão, assim, um desafio futuro para essa organização terrorista, o que não quer dizer que o mundo não deva se preocupar –o Estado Islâmico é, hoje, uma ameaça maior ao Ocidente do que a Al Qaeda.
Publiquei ontem na Folha o perfil desses militantes (clique aqui para ler). O material foi acompanhado por um trecho da entrevista que fiz com o historiador Eugene Rogan, professor em Oxford (leia aqui o perfil dele). Conversamos, durante a semana passada, sobre o modelo político de “califado” e sobre o contexto do surgimento do islã, no século 7. Publico abaixo a íntegra da entrevista àqueles interessados no elemento histórico do Estado Islâmico.
DIOGO BERCITO
EM SÃO PAULO
Quando fincaram a bandeira do fanatismo em uma região que inclui partes da Síria e do Iraque, proclamando ali um “califado”, os militantes do Estado Islâmico tentaram emular uma estrutura política já extinta e, ademais, inviável durante o século 21.
“Não consigo imaginar como o califado poderia funcionar”, diz à Folha o historiador Eugene Rogan, professor em Oxford e autor de “The Arabs: A History”. “Nenhum líder muçulmano reconheceria a autoridade de alguém fora de suas fronteiras. O sistema de Estados é contra a ideia de um califado.”
O Estado Islâmico tenta recriar o modelo instituído na península Arábica no século 7, a partir da liderança do profeta Maomé. A manutenção do poder dependia, então, do reconhecimento da autoridade do califa diante da comunidade muçulmana.
“O Estado Islâmico falha nesse sentido”, diz Rogan, “pois só tem o reconhecimento de um grupo pequeno de pessoas com a mesma mentalidade, e não da maioria dos muçulmanos ao redor do mundo. Não é suficiente.”
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O Estado Islâmico pode ser, historicamente, considerado um califado?
Há um limite. O califado, para muitos, terminou com a queda da dinastia abássida (750-1517). Nesse sentido, é entendido como sucessões de dinastias, a partir do profeta Maomé.
Os otomanos, quando ocuparam o Egito, levaram o título de califa para Istambul. O fim da história é quando Ataturk encerra a instituição do califado em 1924.
O Estado Islâmico está isolado, religiosamente?
Eles estão isolados no sentido de Estado. Todos os países no Oriente Médio têm interesse em preservar a estrutura que o Estado Islâmico está tentando subverter.
É um isolamento político, então?
Ambos estão relacionados. O reconhecimento da autoridade do califado se dá quando os muçulmanos dão o seu reconhecimento ao califa. É assim que alguém se torna califa. O Estado Islâmico falha nesse sentido, pois só tem o reconhecimento de um grupo pequeno de pessoas com a mesma mentalidade, e não da maioria dos muçulmanos ao redor do mundo. Não é suficiente.
Qual é a imagem de “califado” que muçulmanos têm hoje?
Eles enxergam o califado como um artefato histórico, e não como uma extensão de sua religião. Há pouco espaço na religião para haver uma autoridade como a de um califa.
De que maneira Abu Bakr al-Baghdadi, proclamado califa do Estado Islâmico, irá tentar reforçar sua autoridade?
Ele se declarou califa para tentar criar entusiasmo religioso na região. Ele está se firmando conquistando território no Iraque e na Síria.
A autoridade do califa era historicamente dada por auto-declaração?
Não. Os califados passavam de uma dinastia para a outra. O título era tomado por conquista. Baghdadi está conquistando territórios, hoje, mas a diferença é que ele está reinventando o califado —ele não pode dizer que tomou o título ao derrotar alguém. Não há um califado para ser tomado.
Qual era o contexto do surgimento do califado islâmico, no século 7?
“Califado” significa “sucessão”, em árabe. O profeta Maomé era o líder ideal para o islã, mas ele era mortal. A ideia de califado é a procura por outro muçulmano para liderar a comunidade islâmica.
Como eram os califados históricos, estruturalmente?
A liderança religiosa e política eram desempenhadas pela mesma pessoa. É uma característica em comum com a natureza dual da monarquia na Europa até o Iluminismo, quando se questionou a autoridade monárquica. Essa noção foi preservada no período otomano, quando o sultão era a pessoa que tinha autoridade sob as pessoas e também exercia liderança espiritual –não só no Império Otomano, mas em todos os fiéis.
Esse modelo pode se repetir, no Estado Islâmico?
Não consigo imaginar como o califado poderia funcionar no século 21. Nenhum líder muçulmano reconheceria a autoridade de alguém fora de suas fronteiras. O sistema de Estados é contra a ideia de um califado. É impossível concretizá-lo.
A região irá se mobilizar contra o Estado Islâmico?
Muitos dos países na região não querem ser vistos combatendo esse movimento diretamente. Preferem que forças externas eliminem a ameaça. Os militantes dizem que agem em nome do islã, com o apoio de califa, e são considerados muçulmanos praticantes –nenhum líder quer ser visto oprimindo eles.
Qual é o sentido histórico da proclamação de um califado islâmico, no século 21?
É a continuação da política religiosa radical do 11 de Setembro. Você poderia dizer que a Al Qaeda também é um movimento de califado, mas que não chegou tão longe –criou tensão, mas não conseguiu estabelecer um califado. Imagino que Osama bin laden gostaria de ser um califa.
O que permite que isso aconteça agora é que esse projeto só pode ser executado em um Estado fracassado. Precisa haver quebra da autoridade central.
É uma criatura contemporânea, então?
Mais do século 21 do que do 7.