Dorme logo antes que você morra
Nas minhas outras visitas a Gaza, me encantava sentar na varanda do hotel Al-Deira e, tomando limonada com hortelã, fitar a linha de barcos pesqueiros. Devido ao bloqueio marítimo, que impede pescadores de se afastar da costa, eles se concentram todos em uma mesma faixa, formando uma corrente brilhante que se parece com as luzes de Natal que eu costumava pendurar na árvore com meus pais, lá em casa, em São Paulo.
Minha visão predileta foi substituída na guerra, porém, pelos navios de guerra israelenses posicionados no horizonte, quase invisíveis. Às vezes, desaparecem, e nós pensamos que desistiram do bombardeio –então ouvimos o estrondo da artilharia naval, com o ar se expandindo, e imaginamos onde é que irá cair a próxima bomba. Ninguém sabe. Pela manhã, nesta sexta-feira (25), o prédio diante do meu hotel foi explodido.
A sensação de que a morte é real, e vem sem aviso, paira em Gaza, amaldiçoando esse estreito de terra já longe de ter sido abençoado pela história. Para os jornalistas, é claro, os riscos são outros. Somos os que caminham pelas ruas com coletes, capacetes e acompanhados de um motorista que nos retira de zonas de risco em poucos segundos. Também temos a vantagem da informação, com que evitamos o perigo, e de saber que não há objetivos estratégicos nos nossos hotéis para que sejam demolidos por Israel. Civis carecem dessas garantias.
Mas nada nos prepara para a noite, ao som de aviões e navios bombardeando a faixa de Gaza, e para a ideia instalada em recantos profundos da mente que me faz lembrar de uma canção da brasileira Karina Buhr, que um dia vi cantar no Ibirapuera. Em “Nassiria e Najaf”, ela grita: “Dorme logo antes que você morra!”. A letra é dedicada às crianças de Bagdá. Mas não parece absurda em Gaza, hoje.
Dorme antes do míssil passar
Daqui a um segundo
eu posso não ter mais você
Você não mais que isso
Nossa casa explodir
Uma arma cravar meu corpo
Um corpo furar sua carneMesmo o que a gente não tem mais
pode morrer aqui
Não importam seus amigos anjos,
nem sua vontade de comer um bolo,
nem meu vestido novo,
nem meu vestido velhoDorme logo antes que você morra!
Dorme logo antes que você morra!Dorme antes do míssil passar
Daqui a um segundo
eu posso não ter mais você
Você não mais que isso
Nossa casa explodir
Uma arma cravar meu corpo
Um corpo furar sua carneMesmo o que a gente não tem mais
pode morrer aqui
Não importam seus amigos anjos,
nem sua vontade de comer um bolo,
nem meu vestido novo,
nem meu vestido velhoDorme logo antes que você morra!
Dorme logo antes que você morra!Está chovendo fogo
e as ruas estão queimando
Todo mundo assistindo
à gente desmilinguido
Nosso sangue derretendo
junto com o mundo,
que vai se acabando?
Não deu certo!
Tanto trabalho, tanto tempo,
planeta ser feito, gente ser feita,
não deu certo!Dorme logo antes que você morra!
Dorme logo antes que você morra!Essa é pras criancinhas de Nassiria, Najaf, em Bagdá,
uma canção de ninar
Essa é pras criancinhas de Nassiria, Najaf, em Bagdá,
uma canção de ninarDorme logo antes que você morra!
Dorme logo antes que você morra!
Dorme logo antes que você morra!
Dorme logo antes que você morra!