Breaking news: Exércitos árabes conquistam a Espanha

Diogo Bercito
Tariq ibn Ziyad, em gravura de Theodor Hosemann, séc 19.
Tariq ibn Ziyad, em gravura de Theodor Hosemann, séc 19.

Das manias dos repórteres: guardar, em um bloquinho mental, a lista das histórias que queria ter podido escrever. Quais de nós, jornalistas, não queriam ter noticiado com exclusividade a Guerra de Troia, o assassinato de Júlio César, a queda da Bastilha? A mim uma das fantasias mais caras seguiria nestas linhas, na primavera de 711 d.C:

DIOGO BERCITO
ENVIADO ESPECIAL A GIBRALTAR

Um Exército de 7.000 norte-africanos invadiu, hoje, o sul da Espanha. Liderados por Tariq ibn Ziyad, os guerreiros do islamismo –religião recém-criada na península Arábica pelo profeta Maomé– derrotaram sem dificuldades as tropas do rei visigodo Roderico.

Ziyad havia cruzado mais cedo o mar Mediterrâneo, vindo de Ceuta. Analistas ouvidos pela Folha preveem que o estreito atravessado pelo Exército norte-africano será chamado, em breve, por um nome que homenageará seu general: Jabal Tariq, “a montanha de Tariq”, em árabe. Com o tempo, se transformará em Gibraltar.

Testemunhas relatam que, confiante de sua vitória, Ziyad havia se dado a um gesto soberbo ao queimar seus navios após a passagem. Aos soldados, teria dito: “Vocês podem voar? O inimigo está na sua frente, e o mar, às suas costas. Por Deus! Não há salvação para vocês a não ser em sua coragem e perseverança”.

Ziyad e seus soldados irão tentar, a partir de agora, subjugar toda a península. Especialistas apontam que a má gestão e o despreparo da monarquia visigoda fará com que os 5 milhões dos habitantes ibéricos não resistam à invasão, e os guerreiros muçulmanos não devem ter dificuldades em tomar cidadelas em torno da costa mediterrânea.

Nós sabemos, hoje, como a história segue. Os povos árabes se estabelecem na península Ibérica, a partir da invasão de Tariq ibn Ziyad, e criam ali uma rica demonstração de civilização, incluindo um califado islâmico. Córdoba, capital de príncipes, lançava uma sombra nas demais cidades europeias, com sua biblioteca de 400 mil volumes –segundo estimativas, mais que toda a Europa cristã somada.

“Quando os escribas europeus estavam reduzidos a copiar e recopiar os poucos clássicos que sobreviveram à pilhagem bárbara, os sábios islâmicos agora introduziam na Europa os numerais indo-árabes, a matemática avançada, novas técnicas de medicina e abordagens frescas na filosofia”, escreve Chris Lowney em “A Vanished World – Medieval Spain’s Golden Age of Enlightenment”.

Mas os impérios desmoronam. O tecido árabe rasgou-se gradualmente, na península Ibérica, e seus emirados fragmentados foram um a um derrotados pelos Exércitos cristãos, durante a épica Reconquista, imortalizada em canções medievais. Em 1492, Granada, o último Estado islâmico na península, foi tombado.

O que não significa que a Espanha tenha se tornado homogeneamente cristã ou “europeia”. A cultura árabe ainda é, no país, uma rica fonte de que constantemente se bebe. Assim como a língua está recheada de vocábulos árabes (como a “zaga”, do futebol), suas cidades são testemunhas, na arquitetura e nos costumes, dos séculos anteriores.

Cheguei a Madri há alguns dias. Para quem não notou a nova descrição do meu perfil, no canto direito do blog, resumo aqui: começo agora um mestrado em Estudos Árabes e Islâmicos, dando sequência à minha especialização nesta região. Assim, espero que este espaço continue a ser — e seja cada vez mais — um recanto em que possamos discutir os acontecimentos contemporâneos nos países de cultura árabe e islâmica.

Assim como nos califados da península Ibérica, sonharemos que o Orientalíssimo seja um exemplo de boa convivência entre todas as partes e de troca de tradições entre judeus, cristãos e muçulmanos. Como acordado desde o início deste blog, há mais de um ano: shalom, salaam, paz.