Na Síria, o massacre é em déjà vu

Diogo Bercito
A cidade de Hama, antes de seu massacre. Crédito Biblioteca do Congresso
A cidade de Hama, antes de seu massacre. Crédito Biblioteca do Congresso

Corpos em ambos os lados caíam como frutas amadurecidas; a atmosfera era opressiva, saturada com o medo de um caos inominável. O Estado, que esperava uma resolução a esta batalha na mais importante de suas cidades, estendeu as mãos a seus simpatizantes conforme a situação se tornou mais escura e mais complexa. Nossa coexistência prévia tornou-se uma memória, e o assunto de uma nostalgia cuidadosamente exercitada — nós estávamos otimistas de maneira selvagem quanto a matar as pessoas propensas a tal sentimento.

[…]

Quando o tiroteio começou em áreas próximas, era como se Aleppo estivesse em chamas. As pessoas tiveram permissão para sair, e eu caminhei descuidadamente, como se o som das balas fosse uma música na qual eu estivesse viciada. Soldados atiravam ao ar histericamente; eles se pareciam com sapos enredados em um túnel que havia escurecido rapidamente, desorientando-os.

Li, na semana passada, as últimas páginas do livro “In Praise of Hatred” (em nome do ódio), do escritor sírio Khaled Khalifa. A obra, que foi finalista no Prêmio Internacional para a Ficção Árabe de 2008, é beneficiada pela oportuna consciência de tempo. Ela narra a insurgência e o massacre na Síria dos anos 80, mas poderia ser também a história da guerra civil iniciada em 2011.

A insurgência atual começou em 2011, com protestos pacíficos que, oprimidos, se tornaram um violento embate pelo controle do país. Mais de 160 mil pessoas já foram mortas, e milhões de sírios tiveram de deixar suas casas. Regiões ao norte e ao leste estão fora do controle do regime de Bashar al-Assad. Gerações foram perdidas, estruturas foram inutilizadas e o país voltou, nesses anos, aos seus traumas.

Apesar de a ideia de cadáveres caindo ao chão como frutas maduras parecer adequada para descrever os acontecimentos sobre os quais lemos hoje nos jornais, ela foi originalmente pensada por Khalifa para descrever o levante de 1976 a 1982. Foi quando forças islamitas se ergueram ali para derrubar Hafez al-Assad, “o leão de Damasco”, pai do atual ditador.

Alguns dos elementos são comuns a ambas as crises. Em primeiro lugar, o descontentamento em relação a um regime opressivo que detém o monopólio do poder — herdado, com a morte de Hafez, por seu filho. Em seguida, o projeto de estabelecer na Síria um califado islâmico, apesar de essa ideia não ter estado clara nos primeiros meses da atual insurgência e nem ser a única ideologia em disputa.

Assim, podemos ler “In Praise of Hatred” como a narrativa de ambas as crises. Ou, mais especificamente, como a narrativa da doença social que as torna possíveis. No livro, Khalifa aborda o tema a partir dos olhos de uma jovem islamita que descobre no próprio ódio a força motora para sobreviver a tempos cruéis. Por trás de seus véus, ela observa uma sociedade moderna à qual não consegue se integrar.

Já sabemos, pela vantagem da perspectiva histórica, no que resultou a insurgência islamita dos anos 70-80. O regime destruiu a cidade de Hama e massacrou sua população. Até 25 mil foram mortos no país. Presos, torturados e desbaratados, os rebeldes não puderam concluir seus projetos. O Estado pensou, por décadas, que estava estabilizado. Nós também pensamos — estive na Síria em 2010 e, como aos demais observadores externos, não ocorreu a mim que o país estivesse se preparando para rasgar seus tecidos sociais.

As cicatrizes de seus chicotes, eletrodos e cigarros permaneceriam como tatuagens que nem mesmo os padrões de henna conseguiriam esconder. Nos anos tardios, quando eu as descobria e ficava diante do espelho, percebia que o ódio era digno de ser honrado, já que ele vive conosco exatamente como o amor. Ele cresce instante a instante, de modo que finalmente se estabelece em nossas almas, e não queremos escapar dele nem quando nos causa dor.