Como a teoria pode ter levado à invasão do Iraque

Diogo Bercito
Equipamento militar abandonado na região de Mosul, no Iraque. Crédito Safin Hamed/AFP
Equipamento militar abandonado na região de Mosul, no Iraque. Crédito Safin Hamed/AFP

Bagdá, 20 de março de 2003. Às 5:34, no horário local, os Estados Unidos invadem o Iraque sem ter declarado a guerra. O combate ao terror e as alegações da existência de um arsenal de destruição em massa, que hoje sabemos terem sido infundadas, serviram de justificativa ao presidente George W. Bush para iniciar a ação militar. Em 15 de dezembro de 2011, as tropas deixaram o país.

O rastro de destruição, com um tecido social esfarrapado, persiste. Disputas sectárias, ataques terroristas e ofensivas de milícias se tornaram um lugar tão comum, no país, que deram origem ao conceito de “iraquização” de um conflito — a exemplo da guerra na Síria, que aos poucos deixa de constar do noticiário por ter-se tornado, afinal, banal.

Até que grandes ações, como o ataque islamita de terça-feira (10), nos trazem de volta à ferida que continua aberta. Militantes do Estado Islâmico do Iraque e do Levante tomaram, ontem, a cidade de Mosul, a segunda maior do país. Hoje, islamitas cercam usinas de eletricidade e refinarias de petróleo. Com milhões de dólares e um arsenal militar roubados, esses militantes ameaçam a própria estrutura do Estado. O Iraque já parece despedaçado.

Os eventos no Iraque me trazem dois nomes à mente, em termos de referência intelectual. O primeiro é o do escritor libanês Amin Maalouf, que entrevistei há um tempo para a Folha. Conversamos, à época, sobre a questão da identidade e sobre como ela progride rumo ao desastre. Para Maalouf, a invasão do Iraque rachou as linhas sectárias entre sunitas e xiitas e encharcou de sangue o conflito iraquiano. Cliquem aqui para reler essa entrevista.

O segundo nome é o de Bernard Lewis, cuja obra conheci na universidade a partir da recomendação negativa de uma professora. O autor, judeu, é dito um dos grandes especialistas em história árabe. Mas ele é, também, conhecido pela abordagem pessimista em relação ao islã (vide a obra “What Went Wrong”, em que analisa o que acredita ser o fracasso das sociedades árabes). Edward Said, o palestino que cunhou a ideia de “orientalismo”, desprezava Lewis –que é lembrado, hoje, como o mentor acadêmico da invasão do Iraque.

Apesar do desincentivo daqueles que me recomendaram não ler a obra de Lewis, tenho um longo interesse pelo trabalho dele. Li “What Went Wrong” (“o que deu errado”) em um ônibus a caminho de Essauira, no Marrocos. Li a autobiografia “Notes on a Century” quando me mudei a Jerusalém. Passei pelos demais livros, e nesta semana terminei de ler “The Political Language of Islam” (“a linguagem política do islã”) enquanto esperava minha inspeção secundária para voar a Israel (leia mais no post anterior). Há diversas ideias e referências que valem o estudo, ali.

Lewis é, como escrevi acima, visto como a referência intelectual que convenceu a administração de George W. Bush a invadir o Iraque a partir da noção de democratização regional. A ideia encontrava aliados na imprensa, a exemplo do jornalista Thomas Friedman, que apoiou a invasão mantendo a teoria de que um Estado democrático no Iraque forçaria o restante da região a abandonar suas práticas autocráticas. Me lembro de ouvi-lo dizer, em uma palestra em Jerusalém, que se fosse possível criar um ambiente democrático no Iraque, cuja sociedade serviria de microcosmo ao restante da região, seria possível democratizar toda a região.

Hoje sabemos que a ação militar americana teve, se algum, o efeito inverso. Desestabilizou a sociedade, polarizou as opiniões e instituiu a disputa violenta entre sunitas e xiitas. Os governos apoiados pela administração americana se mostraram corruptos e ineficazes, com sucessivos desastres de inteligência — como o fracasso recente em prever e evitar a recente investida do Estado Islâmico do Iraque e do Levante.

Já quase aos cem anos, Lewis justificou-se em suas memórias, em 2012, afirmando nunca ter tido tal papel. Ele escreve que, durante o confronto no golfo, e desde então, ele apoiou na verdade a fomentação de uma oposição interna que fosse capaz de derrubar sozinha o regime de Saddam Hussein (mais tarde capturado e morto durante a invasão americana). Ele critica a ideia de uma “doutrina Lewis”, “que me torna responsável pelas políticas da administração Bush e, mais particularmente, pela invasão do Iraque”.

Mas o “Wall Street Journal” afirma, em uma reportagem de 2004 (clique aqui para ler), que o diagnóstico de Lewis ajudou a definir a maior mudança de rumo da política externa americana nos últimos 50 anos. Ou seja, a política de interferência militar na região e a tentativa de impôr militarmente um modelo democrático a um país que, dirão os críticos, a Inteligência americana parece ainda não ter compreendido.

Ainda, contrariando as afirmações de Lewis de que não teria advogado pela invasão do Iraque, a NBC transmitiu uma entrevista com o então vice-presidente americano Dick Cheney em que ele afirmava acreditar “ao lado de homens como Bernard Lewis, que é um dos maiores estudiosos daquela parte do mundo, que uma ação americana firme contra o terror e contra as ameaças aos EUA irão […] na direção de acalmar aquela parte do mundo”.

A invasão do Iraque, do ponto de vista acadêmico, é justificada a partir de uma série de teorias que se encaixam no que se chama vagamente de “doutrina Lewis”. O que inclui a ideia de imposição de democracia e, em uma visão mais geral, a indagação que ronda a obra de Lewis a respeito do islamismo: essa religião pode ser a base de um Estado democrático? É necessária a interferência exterior para reestruturar suas sociedades?

As políticas externas não se avaliam, é claro, no curto prazo. Mas, ainda que o julgamento tenha de ficar para as próximas décadas, visto a partir de uma perspectiva mais ampla –vocês, como avaliam os recentes eventos no Iraque sob a luz da invasão americana?