Tamerlão, Damasco e um poema triste

Diogo Bercito
O historiador Ibn Khaldun pede a Tamerlão que não destrua Damasco. Ilustração Rembrandt Harmensz
O historiador Ibn Khaldun pede a Tamerlão que não destrua Damasco. Arte de Rembrandt Harmensz

À noite, enquanto as janelas do meu quarto no hotel Blue Tower trepidavam com o estampido das explosões, em Damasco, eu li um poema. Escrito por al-Ghuzuli, o texto lamentava a destruição da cidade. “Meu pesar é por aquelas torres e por sua beleza, engolidas pelos desastres, [meu pesar é] pelo vale de Damasco e por sua graça quando as gazelas foram substituídas por touros”, sofria al-Ghazali.

O poeta lamenta, também, as destruições de Hama e de Aleppo, ao norte de Damasco, “pois são irmãs”. “E quando cheguei ao que aconteceu em seus quarteirões [em Damasco], sobrou a mim chorar as lágrimas do proprietário. A vida não era mais fácil em seus pátios e a casa era a minha casa, e o tempo, meu tempo.”

Olhando para as montanhas de Damasco, tomadas pelo crescimento residencial desenfreado de sua periferia, imaginei o sofrimento de al-Ghazali. Mas ele não estava descrevendo as cenas que eu veria nos dias seguintes, entre explosões de morteiros e leitos ensanguentados de hotéis. O poeta relatava a destruição de Damasco em 1401, quando da invasão de Tamerlão.

O paralelo foi traçado pela pesquisadora Zayde Antrim, em um excelente artigo publicado no site de pensamento árabe Jadaliya (clique aqui para ler). Entrei em contato com a acadêmica, que gentilmente me enviou uma cópia do original em árabe. Os trechos mencionados aqui foram baseados na tradução dela, que consta do texto que escreveu.

Por exemplo, quando al-Ghazali pergunta ao leitor: “Você pensa que Deus está apoiando o nosso sultão de maneira que eu possa dizer que prosperei sob o comando dele? Ó, senhor, o ato do pecado é a raiz de toda a nossa aflição, então perdoe a paixão pelo pecado com o perdão e lave com a água da segurança o rosto de nossa esperança, e por Sua graça mantenha distante o advento dos tiranos”.

Tamerlão havia mais cedo destruído Aleppo e Hama, conforme o poeta menciona, mas Damasco era seu grande prêmio. A cidade foi defendida por forças egípcias sob o comando do sultão mameluco, até que os soldados do Nilo recuaram ao Cairo e deixaram a cidade damascena desguarnecida. Diz a tradição que seus moradores enviaram o famoso historiador Ibn Khaldun para negociar com Tamerlão. Mas a cidade foi, um ano depois, pilhada pelas tropas mongóis em “três dias terríveis de saque, estupro e ruína”, nas palavras da autora. Damasco foi então incendiada.

“Nessa elegia, al-Ghazali não apenas se identifica intimamente com Damasco, mas também alinha Damasco com outras cidades sírias em desacordo com líderes cuja obsessão por poder lhes faz negligenciar suas responsabilidades mais importantes: a proteção do povo”, escreve Antrim.

É claro que,  em tempos de conflito civil, e com Damasco sob ameaça militar, o trauma marcado na história síria vem à tona. A quem se irá referir vai depender do ponto de perspectiva. Os insurgentes sírios irão dizer que Bashar al-Assad é uma nova figura destrutiva (clique aqui para ver uma imagem que o compara a Tamerlão, com o texto “não há diferença” escrito em árabe). Apoiadores do regime, por sua vez, apontarão os excessos dos rebeldes e a destruição causada por suas manifestações.

Ao cidadão comum, porém, representado por al-Ghazali, sempre parece restar o lamento pelas torres e pelos pátios que se vão.