Jihadistas e gatinhos na Síria
Estou atrasado, eu sei. Enquanto eu tomava conta de uma questão logística, em Jerusalém, os demais orientalíssimos blogs escreveram sobre a libertação dos dois jornalistas espanhóis sequestrados na Síria.
Abundaram no Facebook as fotografias de uma criança correndo, de braços abertos, para reunir-se com o pai que não via há meses –que talvez tenha pensado que jamais voltaria a ver.
A história é séria. Javier Espinosa, correspondente internacional do “El Mundo”, e o fotógrafo freelance Ricardo Garcia Vilanova estiveram detidos na Síria por mais de seis meses. Sequestrados na fronteira turca, região hoje sob controle de rebeldes, eles voltaram para casa no domingo.
A partir de agora, eles lidam com o impacto e com os custos da experiência. Há, por exemplo, uma campanha de arrecadação para repôr o equipamento de Vilanova e o dinheiro perdido na empreitada (clique aqui).
A Síria é, hoje, um dos monstros que rondam à noite os repórteres internacionais –que encontram ali relatos impressionantes que, por outro lado, não podem investigar. O acesso é restrito pelo lado do governo, e nas áreas em controle de rebeldes tornaram-se comuns os sequestros de jornalistas, a exemplo de Espinosa e Vilanova. O deserto sírio, que visitei meses antes da guerra, a turismo, tem engolido para si as histórias que talvez nós nunca poderemos escutar.
É curioso que, em um assunto tão delicado, internautas estejam obcecados não com o relato das dezenas de dias passadas em cativeiro, mas com um detalhe da campanha de libertação dos jornalistas: a fotografia de um jihadista do Estado Islâmico do Iraque e do Levante com dois gatinhos.
Relatos sugerem que fosse um apelo sentimental por parte de militantes para que os islamitas ligados à rede terrorista Al Qaeda libertassem Espinosa e Vilanova.
Uma rápida busca pela timeline do meu Facebook, do qual fazem parte diversos jornalistas, me levou a diversas outras imagens do gênero. Aparentemente há um filão de fotografias de islamitas com felinos, como parte da experiência inusitada da internet. Há também fotografias de militantes de organizações mais seculares, como o Exército Livre da Síria, alimentando filhotes.
Para além do inusitado, é possível que haja nessas imagens, também, o indício da tradição islâmica de respeito a gatos. Um dos companheiros de Maomé, profeta do islamismo, era conhecido como Abu Hurairah (pai do gatinho) devido a seu apreço aos bichanos. E diz-se, em diversos registros, que Maomé tinha uma gata chamada Muezza –tamanho era seu carinho que ele teria cortado parte de seu manto em vez de acordá-la, quando ela dormia nele. Também se diz que o profeta do islã considerava o amor aos gatos como uma faceta da fé.
Há algo de perturbador em ver homens armados alimentando filhotes de gato. Nós nos lembramos dos vídeos de rebeldes decapitando inimigos. Também nos recordamos do infame registro de um insurgente arrancando o coração do peito de um oponente e mordendo o órgão. Assim como sabemos, quase de cor, as histórias que incluem mãos decepadas e refugiados famélicos se alimentando de animais;
Mas talvez esteja aí o súbito interesse nessas imagens. Não apenas porque o aparente irreconciliável nos incomode. Mas também porque nos lembre de que mesmo nas regiões mais sombrias, entre as histórias mais assustadoras, haja um minuto no dia em que um homem repouse a sua metralhadora para afagar um gatinho.