O islã místico e a guerra na Síria

Diogo Bercito
Homem alauita em cartão postal francês do início do século 20. Crédito Reprodução

Peço, primeiro de tudo, perdão. Alguns leitores se manifestaram, preocupados, dada minha ausência neste blog. Apesar das agruras da cobertura do conflito egípcio, estou bem –e, se não escrevi aqui nos últimos dias, foi mais por excesso de trabalho do que pelas dificuldades em si.

Pois bem. Com o minguar dos protestos islamitas, no Cairo, o Egito está por ora na periferia do radar deste Orientalíssimo blog. A principal questão oriental parece ser, agora, a Síria. Na semana passada, o relato de um ataque químico nos arredores de Damasco, com centenas de mortos, trouxe a ditadura de Bashar al-Assad de volta para as manchetes. Há grande expectativa de que potências ocidentais resolvam, em breve, intervir no país. Os dois anos de insurgência já deixaram, ali, mais de 100 mil mortos, segundo as Nações Unidas.

Tudo isso são questões do noticiário. Mas me chamou a atenção, hoje pela manhã, a ideia de que talvez os retalhos políticos da Síria ainda sejam, em grande parte, um enigma. Conversando com um amigo, me dei conta de que para muitos dos leitores o termo “alauita” ainda é, se não um completo mistério, ao menos uma confusão epistemológica.

Vamos começar com um fato –o ditador sírio Bashar al-Assad faz parte de um ramo específico do islamismo chamado “alauismo”. Outro fato: alauitas são, também, xiitas.

Não é difícil provar que essas duas afirmações estão relacionadas ao conflito na Síria. Em primeiro lugar, porque alauitas são um grupo minoritário no país. Em segundo, porque, devido ao desenrolar da história, eles controlam o poder há décadas ali. Por último, porque ser governada por um ramo do xiismo aproxima a Síria de países como Irã e Líbano e a afasta de outros como Arábia Saudita e Turquia. O tabuleiro está, assim, montado.

Também é importante entendermos quem são os alauitas porque, com os avanços do conflito civil na Síria, não são poucos os analistas que preveem a fragmentação territorial, dando lugar a um Estado alauita na costa mediterrânea –como, aliás, existiu entre 1920 e 1936, durante a ocupação francesa.

Exposto o contexto do retalho sírio, uma pequena digressão se faz necessária para entendermos a posição religiosa dos alauitas –espécie de vertente mística do xiismo (uma das duas divisões do islamismo, a outra sendo o sunismo).

Os alauitas surgiram por volta do século 10º como seita organizada, dando sequência a uma tradição religiosa do século anterior. O nome “alauita” significa “seguidor de Ali”, em referência ao primo do profeta Maomé e quarto califa do império islâmico.

É difícil afirmar, com segurança, em que acreditam os alauitas, em comparação a seus irmãos muçulmanos. A crença deles é, de certa maneira, obscura. Há relatos de que acreditem na divindade de Ali, um pensamento alienígena na tradição islâmica ortodoxa. Já se disse, também, que alauitas creem na reencarnação. Mas eu, na minha ignorância, não insistiria em nenhuma dessas afirmações. É preciso levarmos em conta, também, que as últimas décadas viram um efeito de “sunitização” (ou seja, influência dos sunitas) sob a ditadura da família Assad, temerosa do isolamento da comunidade alauita em meio ao mundo islâmico, que tradicionalmente vê esse grupo como hereges.

Os alauitas se concentram nos arredores da cidade de Latakia, região da qual vem a família do ditador Bashar al-Assad. Eles compõem, hoje, 11% da população síria –e o caldo grosso do poder político, no país, a partir de uma forte representação no Exército durante as décadas passadas.

Há uma nuvem de areia cobrindo os nossos dias, de maneira que não conseguimos enxergar o que está adiante. Talvez, na semana que vem, tudo o que está escrito aqui se prove inútil. Mas é provável que, em breve, com a piora do conflito sírio –e uma possível intervenção externa– nos seja útil entender no que acredita o homem que está levando a Síria para esse futuro incerto.

Crédito Editoria de Arte

Comentários

  1. Diogo. Texto muito interessante e didático. Você acredita que o regime de Assad é mesmo o responsável pelo ataque químico?
    Quando a situação no OM estiver mais tranquila seria interessante escrever um pouco mais sobre as minorias (étnicas e religiosas) da região: Drusos, Samaritanos, Caldeus, Beduínos, etc.

    1. Ricardo, não tenho como fazer essa avaliação. Mas, a julgar pelo contexto, não me surpreenderia que fosse a mando de Assad, sim.

    2. A julgar pelo contexto Diogo (exército sírio vencendo a guerra interna e presença dos membros da onu no país) se torna evidente que o regime de Assad não teria nada a ganhar com um ataque quimico, apenas quem ganha com isso é a oposição que, como deves saber, é financiada por EUA, ISRAEL e Arábia Saudita.
      A Síria é por onde passa o armamento enviado pelo Irã ao Hazbollah no Libano e interessa a Israel a mudança de regime no país.
      Os rebeldes em questõa são formados em grande parte por mercenários de diversas nacionalidades e por mais de uma vez líderes da chamada “oposição síria” renunciaram por sentirem falta de independência em relação a poderes externos.
      Sugiro que em seu contexto também inclua nos rebeldes a facção Al Nusra, que já controla parte do território onde atrocidades são cometidas e que está ligada a Al Qaeda, organização combatida pelo ocidente em países como pakistão e financiada em outros como a Síria.
      Se precisas de fontes de informações posso lhe passar, sugiro que abandone a leitura de materiais presentes na mídia corporativa.
      Um abraço

      1. Pois é Roberto,o articulista se autodenomina um ignorante no assunto,eu não chegaria a tanto.Penso que no mínimo demostra ingenuidade em entender a sociedade síria e a dinâmica do conflito atual.Aliás,eu me pergunto porquê nas mídias tradicionais não se vê artigos dito com propriedade sobre a Síria???

  2. Mais uma vez, um ótimo texto. Estou adorando seu blog, Diogo. Sempre claro e didático, precisamos mais disso para descrever o Oriente Médio. Paz.

  3. .
    Não há “rebeldes” em mais que 5% na Síria. O restante são mercenários estrangeiros vindos do Iemen e Líbia – NÃO SÃO NATIVOS – recrutados pela Arábia Saudita, Qatar e Turquia, e co-financiados pelos EUA, UK e França.

    Trata-se portanto de uma INVASÃO estrangeira, promovida pelo “Ocidente” (conglomerado imperial Anglo-Euro-Americano).

    Tudo o mais é secundário, em face desta monstruosa acobertação promovida pela imprensa ocidental.

    Sobre o massacres químicos:

    O exército sírio já destruiu os invasores em 95%, então porque faria ataques químicos contra uma população que o apóia?

    Entre o ditador e os invasores, o povo ficou do lado do ditador, muito simples.

    1. Concordo com você, não faz sentido ele jogar gás tendo a vitória quase certa.

      Enfim, não sei quem vai ganhar com a queda dele, pois entre os rebeldes estão os piores tipos de ignorantes e fanáticos.

      Ironicamente os EUA apoiam eles… Provavelmente existe um interesse da arábia saudita que quer implantar o wahabbismo do mais louco em toda região.

      Abraço.

  4. Parabéns Diogo. Ótimo texto. Sobre o gás mortífero, essa ação abominável e imoral faz o padrão exato dos criminosos do Hizbollah, sem tirar nem por uma vírgula. Nada me convence do contrário, pelo menos por enquanto. O Ocidente precisa, mais cedo do que nunca, entrar e botar ordem na casa, esquecer o conceito de democracia que não se coaduna com o contexto cultural desses países, e expulsar os extremistas dos dois lados do conflito. A mão ali tem que ser dura e nada menos que isso, porque o angu está encaroçado. Se ruim Assad, pior Al Qaida.

    1. Não entendi, Benny. Sua proposta é uma intervenção internacional e a imposição de um governo estrangeiro?

    2. “Sobre o gás mortífero, essa ação abominável e imoral faz o padrão exato dos criminosos do Hizbollah, sem tirar nem por uma vírgula. ”

      COncordo 100%!
      Esse Hizbollah e’ o pior grupo terrorista que ja’ apareceu na face da terra. E tem gente, incluindo jornalistas (nao voce diogo) , d ejornais grandes que ainda tentam encher a bola destes covardes.

    3. “O Ocidente precisa, mais cedo do que nunca, entrar e botar ordem na casa”

      Porque funcionou muito bem no Iraque, Afeganistão, Libia, etc… Certo ?

      Hum, acho que não ….

  5. Qual seria o interesse de Assad utilizar armas químicas? Jogar toda a comunidade internacional contra ele? Não acredito nesta hipótese de forma nenhuma. É jogo de propaganda para abrir caminho para intervenção americana. Me faz lembrar das armas de destruição em massa de Sadam no Iraque.

  6. os yankes americanos ao lado dos colonizadores franceses e britânicos querem fazer na SIRIA o mesmo que fizeram no IRAQUE, DESTRUIR! Quantos inocentes não morrem todo dia na guerra sectária entre sunitas e xiitas por causa de um criminoso de guerra chamado george w. bush.

    1. rubens goncalves,e muito facil colocar a culpa
      dos problemas no Mundo nos Estados Unidos.Se nao fossem eles milhoes de civis seriam mortos no Iraque,no Afeganistao, na Libia,na Tunisia,sem falar nas Guerras passadas.A CULPA na Siria sao dos proprios Arabes que nao se entendem entre si,e isto e historico.basta ver o Egito,o Libano, o Iraque,no Afganistao,etc….
      Voce esta MUITO enganado.

  7. Nossa descobri hoje seu blog por estar na primeira página do UOL, realmente muito bom e, o que mais me chama a atenção, é que tu tentas ser imparcial e mostrar os dois lados, tanto muçulmano, cristão e judeu. Precisamos de mais pessoas como você.

    Bem, basicamente os xiitas e os alauitas são vistos diferentemente pelos sunitas, como eu, pois eles, como tu disse, são seguidores de Ali, dando a ele uma espécie de santidade, tal como um santo católico.

    Discordamos disso totalmente, pois o próprio Quaran veda qualquer adoração a qualquer coisa além de Deus.

    Quanto o que difere os alauitas dos xiitas basicamente é que além dos 5 pilares de fé os primeiros tem mais um que seria a reflexão/meditação contra as tentações. Vou estudar mais isso na mesquita e se eu estiver errado eu volto para dar uma ideia melhor.

    Abraço.

    1. Seja bemvindo, Heitor. É sempre bom ter alguém que possa trazer informações “de dentro”, principalmente se for de maneira clara, cordial e com conteúdo. Contamos (ou pelo menos eu conto) com você para contribuir para as discussões aqui.

      1. Ah vale lembrar, nada contra Ali, primo de Maomé (a paz esteja com ele), inclusive se tornou 4º califa depois se não me engano, só que os xiitas se perderam em adorá-lo e considerá-lo sucessor direto, o que nunca foi provado pelo mesmo.

  8. Prezado Diogo, só você, com sua generosidade e condescendência, para titular de “mística” as diferentes guerras e conflitos sectários envolvendo o mundo islâmico.

    É bom tê-lo de volta. Luiz.

        1. Concordo com a palavra “mística” adota pelo autor, pois o que os xiitas e sua vertente alauíta fazem é uma verdade mística aos olhos de nós sunitas.

          Para ti tentar entender: A umbanda adota os santos católicos, Isha (Jesus) e uma série de tradições da mesma, mas para os católicos não tem relação nenhuma, parecem até místicos.

          Acho que ficou claro.

          Abraço.

  9. Como sempre, excelente texto, Diogo. Já que a Síria é a bola da vez, será que você podeira escrever um artigo sobre a proporção de estrangeiros entre os grupos rebeldes? Já vi muita gente falando a respeito, mas se você for à Síria nos próximos dias (se é que já não está lá), seria interessante saber quem são e por que estão ali, e o que o resto da população acha de sua presença.

    Não que eu queira pautar seu blog, longe disso, mas acho que é um assunto tão importante quanto sua análise a respeito dos alauítas.

    1. Pelos relatos que recebo e conheço existe um grande número de mercenários líbios que ficaram “órfãos” depois da queda do Kadaffi, além da população local e infiltrados da Arábia Saúdita, Iraque e Turquia que são opositores do Assad e, também, enviam armas e dinheiro (provavelmente do petróleo saudita).

  10. Diogo,
    Bom artigo.

    O rpoblema e’ que essa zorra e’ no oriente medio inteiro.
    O mais surpreendente e’ o porque ,do ponto de vista sociologico, os arabes nunca conseguiram evoluir par aum sistema funcional de partidos apoliticos.

    Alguma ideia?

  11. As pessoas politicamente corretas cham isso de “briga d eetnias”, mas a verdade e’ a velha briga de “war lords” e guerra de tribos.

  12. Acho um erro os Estados Unidos e os
    Aliados se meterem nesta “”fria”” da
    Siria.Eles que se entendam,porque acordo
    com eles nao vai ter nunca,nem com a
    queda do Assad e nem com o Assad la.
    E para variar vao largar o pau nos Estados
    Unidos,e nem vao se lembrar dos aliados.

  13. Os Alauítas segue uma doutrina que esta ligada a um único Deus, Allah, sendo Muhammad que é o proprio Maomé, o seu último profeta. Diferente do que vc publicou, que no caso da crença em “Ali” esta ligada aos xiitas.

    1. Marcus, os xiitas não creem em Ali, mas acreditam que a linhagem dos califas deveria partir dele. Abraços e obrigado, Diogo

  14. Segundo as páginas do wikipédia francês, os alaouitas são uma facção do Islam que professa a crença na bênção do Espírito Santo sobre os Imams chiitas. Os demais muçulmanos não concebem a crença numa existência qualquer do Espírito Santo. Por outro lado, o que difere os Sunitas dos Chiitas, são prioritariamente divergências quanto à herança do Saber do Profeta « Mahomet ». Os primeiros entendem que o Saber do Profeta e sua autoridade legal podem ser exercidas pelo « Calife », homem político exercendo poder sobre um determinado território « Califat ». Quanto aos Chiitas, estes entendem que o Saber e a autoridade do Corão devem se manter sob a tutela de uma pessoa da família do Profeta.
    http://fr.wikipedia.org/wiki/Alaouites
    http://fr.wikipedia.org/wiki/Chiisme
    http://fr.wikipedia.org/wiki/Sunnisme

  15. A opinião de todos é muito válida…mas já a muito tempo sabemos que a interferência externa no conflito é puramente com interesse econômico na região…todos nós somos controlados e não admitimos isso…com o ataque com armas químicas feito como o famoso ” ataque sobre falsa bandeira “….atrai a atenção de todos para um motivo “válido” para as forças externas agirem…é lógico que o ataque foi orquestrado para parecer que foi Bashar al-Assad…é triste porque vemos pessoas morrendo indiscriminadamente pelo egoísmo humano…ninguém favorece ninguém…existe esse poder secreto e infelizmente estamos na base menos favorecida.

  16. VAMOS NOS CONVENCER QUE ESTAS GUERRAS EXISTEM A MILENIOS, OU SE DIVIDE AQUELAS TERRAS E CADA FACÇÃO FICA COM SEU QUINHÃO, OU VAI TER GUERRAS ETERNAS POR ALI, SÃO GRUPOS HUMANOS INTOLERANTES E COM ESTA GENTE É DIFICIL CONVERSAR.

    1. Eduardo Rueger,a briga nos Paises Arabes,especificamente na Siria,nao e
      por TERRAS,e sim por RELIGIAO e PODER.
      No Egito e a mesma coisa.No Iraque igual.
      No Yemen tambem.No Libano,na Tunisia,na
      Nigeria,e por ai vai.NUNCA vao se entender,como voce mesmo diz eles sao
      atrasados e cegos.

  17. fácil ,,,,fácil ,,,comentar ,porque não vai ate a síria depois faz seu comentário : a respeito de religião e de bassar al assad converse com o povo sírio de la´,cristão suni ,sii ,alauitas ,,,ai vocês podem fazer um comentário ,verdadeiro,e que a paz de DEUS esteja com vocês e um grande abraço do meus irmão de bab touma;;;

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