Os árabes escolhem seu novo ídolo
Todos os árabes se chamam, hoje, Mohammed Assaf. É o nome do garoto de 23 anos que foi escolhido, no sábado (22), como novo ídolo do mundo árabe por meio de um reality show de TV no estilo “American Idol”.
Assaf competiu, na final, com um candidato egípcio e outro sírio, no zênite desse programa televisivo que me faz lembrar, de alguma maneira, o pan-arabismo em sua faceta histórica –não o socialismo do presidente egípcio Gamal abd al-Nasser (1918-1970), mas a noção de uma comunidade única unida pela língua árabe e, antes dela, pela crença na revelação divina ao profeta Maomé.
Quando Maomé falou aos habitantes de Meca, no século 7º d.C, ele estava lidando com uma península retalhada em tribos e regida por códigos morais e de hombridade. Em poucos anos, o profeta do islamismo uniu os árabes no que passou a ser chamado de “umma”, a “comunidade”. É uma noção que persiste até hoje.
Os séculos se passaram. Após a morte de Maomé, a “umma” teve de decidir como levaria adiante o projeto comunitário. Tribos se rebelaram e foram reprimidas pelas mãos firmes do primeiro califa, Abu Bakr. Mas logo a liderança da “umma” tornou-se uma questão central no islamismo, levando à divisão entre sunitas e xiitas, discordantes em relação a quem deveria dar continuidade aos ideais de Maomé.
O império islâmico se derramou pelo mundo conhecido. Derrubou bizantinos e persas, tomou o norte da África e se estabeleceu na península Ibérica, ameaçando a França. Mas logo esse califado fragmentou-se, e o poder foi dividido entre cidades como Bagdá, Damasco, Cairo e Córdoba. Então vieram os cruzados, os mamelucos, os otomanos e os europeus. Hoje, o território um dia unificado está dividido em Estados como Síria, Líbano e Iraque. Desnecessário dizer que, em sua maioria, os países árabes enfrentam séria crise.
Então, de volta a Assaf e à sua vitória nesse programa que colocou árabes de todo o mundo para disputar, na frente das câmeras, o posto de ídolo da “umma”. Assaf é palestino, morador da faixa de Gaza. O músico libanês Ragheb Alama definiu o rapaz como “um foguete de amor e paz voando sobre as cidades da Palestina, Jerusalém, Nazaré, Gaza e Ramallah”.
Mas, olhando de perto, a unidade dos árabes que assistiram juntos ao redor do mundo à final do “Arab Idol” é frágil como foi frágil a coesão dos califados após a morte de Maomé. O programa foi exibido pelo canal saudita MBC, sob protesto de setores conservadores. O Hamas, que governa a faixa de Gaza, impõe uma série de restrições à música nesse território empobrecido, e houve críticas até mesmo ao fato de que o “Arab Idol” misturava homens e mulheres no mesmo palco.
Desde a invasão americana no Iraque, em 2003, é difícil falar em unidade entre árabes. Sunitas e xiitas parecem estar, a cada dia, mais em conflito, mais em oposição. Ser escolhido herói dos árabes, nesses tempos, será um desafio a ser resolvido, a partir de hoje, pelo jovem Assaf. Como dizemos em árabe, “bitawfiq” –boa sorte.
Diogo. Ao longo da expansão islâmica diversos povos foram arabizados e hoje a definição de povo árabe é feita apenas com base na língua? Outro conceito controverso e que garante uma unidade frágil é o de “Latino”( luso e hispanoparlantes)
Ricardo, é uma definição ampla. Os próprios árabes falam em povos “árabes” e “arabizados”.
Só citando um exemplo bem claro, chamar um Bérbere Argelino ou Marroquino de Árabe é quase um mote para arrumar uma briga. Ainda que exista a coesão pela Umma e o Islam como um todo, ela é apenas utilizada quando é um tanto conveniente…isso quando falamos de Sunitas. Entre Sunni e Shi’a, é quase impossível ter coesão.
Mas Vinicius, pelo que entendo a população marroquina, por exemplo, é dividida etnicamente entre berberes e árabes (maioria berber). Eles só seriam chamados de árabe culturalmente. Mas me corrija se eu estiver errado.
Nasser nao propunha um “socialismo cientifico” mas o “socialismo arabe”, o que nao eh a mesma coisa
Pedro, obrigado pela observação. Mas acredito que definir o programa socialista de Nasser pode ser tema de outro relato aqui no blog. É um assunto bastante interessante. Veja que ele próprio se referia a ele como “socialismo científico”. Você tem outras sugestões para abordarmos esse tema aqui?
Caro Diogo,
O termo “socialismo cientifico” foi cunhado por Engels para diferenciar o materialismo historico proposto por Marx, onde o proletario industrial levaria à revolucao socialista, daquela outra corrente do socialismo utopico propria do seculo XIX. Nasser nao se inscreve na tradicao marxista, à qual se opoe explicitamente, mas na corrente do pan-arabismo, cuja teoria na epoca era principalmente desenvolvida por intelectuais do partido Baas sirio. Nao por acaso Siria e Egito se unificaram e formaram um soh pais durante tres anos entre 58 e 61, periodo auge da ideologia pan-arabista. Nasser comeca a empregar o termo “socialismo arabe” principalmente apos a unificacao do Egito com a Siria, para justificar uma ampla politica de estatizacao da economia e planos quinquenais ao modelo sovietico. à despeito disso, jamais considerou-se marxista pois, para ele, a emancipacao nacional face o colonialismo era o fim ultimo da revolucao. Longe de encampar a luta de classes, defendia que a nacao deveria se unir para se fortalecer face o inimigo exterior e assim poder internamente buscar construir uma sociedade harmonica. Seu socialismo tambem incluia a dimensao espiritual, desprezada no socialismo cientifico. Era, portanto, um pan-arabista, como fica explicito em seu livro “a filosofia da revolucao”. Paises como Mali e Iemen do Sul, por exemplo, se tornaram comunistas no contexto da Guerra Fria e, nesse caso, nomearam ao seu modelo de desenvolvimento “socialismo cientifico”. Minha chamada foi relativa ao cuidado com os termos. Mas tudo isso eh uma questao marginal dentro do seu texto, que passa apenas brevemente por esse tema sem que afete o conteudo.
Obrigado, Pedro!
Eu acho que a desunião entre os árabes é um problemão para os próprios árabes, mas um fato positivo para os judeus.
Imaginem a força dos árabes se eles fossem unidos, não tinha pra ninguem. Mas do jeito que está continuamos a ver duas divisões basicas : os moderados e os radicais. E eu não preciso nem dizer quais paises pertencem a que grupo pois todo mundo sabe.
Assaf parece ser um intérprete talentoso e, a exemplo de Ibrahim Ghunaim do MC Gaza, deve fazer sua carreira alavancar para além das fronteiras de Gaza, um território que, a passos céleres, retorna à alta Idade Média. O futuro da Faixa é uma incógnita e certas manifestações culturais e comportamentais, ditas ocidentais, são repudiadas ou proibidas, o que leva pessoas ligadas à musica e às artes em geral, e até estudantes graduados, a buscar outros horizontes, outras fronteiras. Que Mohammed Assaf não escolha se tornar mais um desocupado ressentido em Gaza, mas que possa superar essa adversidade e buscar o melhor para sua carreira e vida.