As brumas poeirentas de Sanaa, Iêmen

Diogo Bercito
Sanaa coberta de poeira. Crédito Diogo Bercito/Folhapress

A primeira coisa é o cheiro de poeira. Sanaa, a capital do Iêmen, está coberta pela areia de uma tempestade soprada desde os desertos da Arábia Saudita. Depois é o gosto seco na língua, a pele áspera e a visão da bruma que se deitou sobre a cidade.

Eis o extremo sul da península arábica, o país mais miserável do mundo árabe. É o ninho da franquia mais perigosa da Al Qaeda, é um complicado retalho de tribos bem armadas –mas é também onde a revolução trazida pela Primavera Árabe está caminhando para uma solução por enquanto pacífica.

Estou no Iêmen durante esta semana, a trabalho, andando por entre os prédios tradicionais desta que é uma das cidades mais antigas do mundo, Sanaa. Há muito a ser dito sobre o país, nos próximos dias. Por enquanto, pensei em dividir com vocês algumas das primeiras impressões.

A segurança, por exemplo. Ainda é cedo para ter uma opinião. Mas, a despeito dos avisos desaconselhando a viagem emitidos por departamentos de Estado, e a despeito do número crescente de sequestros de ocidentais, tenho encontrado um país em tudo receptivo a estrangeiros. “Ahlan wa sahlan”, me dizem a torto e a direito –bem-vindo.

Quando descobrem que falo árabe, então, me transformo num príncipe, e então tenho de me adaptar ao dialeto iemenita, em que o som de “q” vira “g”, transformando o “al-balad al-qadim”, a cidade antiga, em “al-balad al-gadim”. Me adapto também à “zahma”, o caos no trânsito, e a música iemenita das buzinas insones.

Há alguma coisa de especial no Iêmen. Já estive ao redor da região –Líbano, Síria, Egito, Jordânia, Turquia, Israel e territórios palestinos. Já estive na África Oriental, também, e em recantos como Coreia do Sul e Austrália. Mas nunca caminhei nas ruas de um país como este, em que as pessoas parecem comprometidas a dar continuidade às tradições.

Homens andam com adagas penduradas na barriga, em um complicado e essencial código social. A depender do material, em especial prata e chifre de rinoceronte, essas armas valem milhares de dólares e colocam o dono em sua respectiva posição na hierarquia local.

Homens andam, também, mascando o qat, uma erva com efeito estimulante que é proibida ao redor do mundo mas, aqui, é tradição unânime. Uma tarde sem uma longa pausa para mascar a verde folha e conversar com os amigos não é uma opção nesse emaranhado social.

Esses detalhes são a superfície de toda uma cultura distinta que ainda estou aprendendo a reconhecer. Resultado, imagino, de uma história contínua de civilização, a começar pelo tempo em que o Iêmen respondia pelo nome de “Arabia Felix” –a Arábia Feliz, para os romanos que traziam daqui o valioso incenso que perfumava seus templos.

O incenso que saía do atual Omã e passava por aqui ergueu impérios. Não apenas aqui, mas também na Jordânia, onde os nabateus chegaram a rivalizar com Roma na região após enriquecer com o controle das caravanas de incenso que, por fim, chegavam ao porto de Gaza e, dali, eram levadas ao mundo romano.

Viajantes que passaram pelo Iêmen, incluindo os famosos Ibn Batuta e Marco Polo, escreviam sobre o cheiro de mirra. Os tempos, é claro, eram outros. O fim do Império Romano e a descoberta de outras rotas comerciais fizeram a região declinar. Os cheiros mudaram com a ocupação otomana, com a colonização inglesa, com o separatismo do sul, com a experiência comunista e, recentemente, com a revolução de 2011.

Hoje, insisto, o cheiro de que não me esqueço é o da poeira. Para amanhã, torço que o pó abaixe e me deixe ver o Sol.

Homem em região próxima à cidade antiga da Sanaa. Crédito Diogo Bercito/Folhapress
O icônico Portão do Iêmen, no centro da cidade. Crédito Diogo Bercito/Folhapress
Jovens iemenitas entre a tempestade de areia. Crédito Diogo Bercito/Folhapress
Na cidade antiga, entre vendedores de pão. Crédito Diogo Bercito/Folhapress
Sanaa, cercada por montanhas. Crédito Diogo Bercito/Folhapress

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