Saúde mental ainda é escanteada no Iraque, em meio à crise humanitária
Publiquei hoje na Folha uma reportagem sobre a distribuição de livros entre crianças refugiadas no norte do Iraque. O projeto é especialmente interessante porque produz obras infantis que refletem o contexto dos refugiados. “Os livros distribuídos entre refugiados são sempre americanos, com crianças brancas com nomes estrangeiros”, afirmou Carmen Little, responsável pelo projeto na organização Amar. “Parece que o final feliz não foi escrito para você.”
O trabalho da Amar é relevante nessa região porque trata de um problema por vezes escanteado: a saúde mental. Segundo a organização, há apenas 17 profissionais dessa especialidade no norte do Iraque, e só quatro deles foram treinados para lidar com crianças e adolescentes.
O Orientalíssimo blog conversou sobre essa questão com Ali Muthanna, gerente das operações da Amar no Iraque. Abaixo, reproduzo trechos da entrevista.
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A Amar tem trabalhado em campo nas últimas décadas. Como você compararia a crise atual no Iraque com outros contextos em que a organização atuou?
A Amar tem trabalhado na região desde 1991, mas a crise atual é diferente de tudo o que vimos antes. Sequestro, estupro, tortura, execuções sumárias –o nível e a amplitude da brutalidade do Estado Islâmico são absurdos. Hoje, mais de 3,3 milhões de pessoas foram deslocados de suas casas, e mais de 10,7 milhões necessitam de ajuda humanitária com urgência. Centenas de milhares de iraquianos sofreram feridas graves e grandes porções da população sofrem de trauma severo como resultado da violência que presenciaram.
Como você descreveria a crise humanitária no Iraque, hoje, e qual é o foco da organização?
A situação no Iraque é, dizendo de maneira simples, um desastre. Estamos trabalhando para entregar assistência de emergência ao maior número de iraquianos o possível. Acabamos de abrir nossa quarta clínica totalmente equipada para a assistência vital a quem foi deslocado de suas casas. E é importante que não estamos apenas trabalhando diante das necessidades imediatas, mas também na assistência de longo prazo de maneira sustentável por meio da educação, treinamento vocacional e cuidados mentais.
Há um projeto para o tratamento do trauma. Essa não é uma prioridade em outras organizações. O sr. diria que o trauma não é devidamente tratado na região?
Sim. Décadas de sanções, guerra e instabilidade fizeram o sistema de saúde do Iraque desmoronar. Em partes do país, é quase inexistente. As clínicas para saúde mental estão ainda piores –geralmente deixadas de lado diante do esforço para resolver questões primárias. Veja a região do Curdistão, por exemplo. É uma região à qual mais de 1 milhão de iraquianos fugiram. Lá, há apenas 17 profissionais de saúde mental, e apenas quatro deles foram treinados para trabalhar com crianças e adolescentes.
Quão severo é o trauma causado pelo Estado Islâmico, e como pode ser tratado?
São níveis extremamente altos, especialmente entre mulheres e garotas que conseguiram escapar do cativeiro. Tomadas como escravas sexuais por meses, elas foram estupradas, espancadas e torturadas. Com esse tipo de trauma, levará anos para as vítimas superarem suas experiências por completo. É por isso que é tão vital desenvolver a estrutura de saúde mental no Iraque.
Entre seus parceiros globais, há alguma contribuição do Brasil? Se não, que tipo de contribuição seria bem-vinda de um país como o Brasil?
Por enquanto, não recebemos nenhuma assistência oficial do Brasil. Mas, desde que lançamos nossa campanha “Escapando da Escuridão”, recebemos doações de todo o mundo, incluindo o Brasil. Doações, não importa quão grandes ou pequenas, fazem uma grande diferença ao nosso trabalho. Apenas R$ 80 nos ajudariam a aconselhar oito garotas.